PRÓLOGO: Sonho
de Uma Eterna Noite
Durante esses
dias, por muitas noites sonhei com uma remota fascinação. Foram aspirações e
devaneios, a nudez de uma sinceridade distante, a leveza impossível de um
coração tão aberto e franco como era o próprio dia que o adornava. Eu caminhava
vagarosamente ao teu lado, e minha sombra e a tua eram uma fruição calada. Teu
sorriso espontâneo, fresco, brilhante, era um diálogo à parte de minhas
conversas tão bobas, meus assuntos perdidos sem início nem fim, angustiado que
no fundo estava para não te perder. Em cada segundo eu te precisava, e estavas
ali. Era um vale, às vezes uma colina. Estávamos acima do tempo e do mundo, o
céu nos convidava ao infinito, o sol permitia que sob algumas árvores
pudéssemos parar por breves minutos. E aqueles eram minutos seculares, eram
minhas mãos que tinham longamente tua pele por estrada. Eu tive o toque dos
teus cabelos pela mais tíbia lembrança antes dos calafrios rajados em teu
pescoço. Eu jamais soube explicar o que houve, como foi aquilo, quando. Foi
algo que, a cada sonho, emanava de teus olhos, foi a moldura do teu rosto, o
teu sorriso composto de pérolas. Foram teus ombros, teus braços, foram teu
peito e tuas canelas. Foi tudo e talvez nada. Foi talvez tua voz contando sobre
coisas tão singelas, foi tua vida pequena e frágil que num determinado instante
esbarrou sobre a minha e lançou-me a um sonho de mil noites. Foi o desenho do
teu nariz, foram tuas sombrancelhas, foi o momento em que teu queixo
acidentou-se com meu rosto - mas isso jamais aconteceu, por mais que eu
encenasse em devaneios febris. Foi teu pedido de ajuda, em algum lugar, em alguma
hora. Nem sei se foi verdade, nem sei se foi outra história, dessas que invento
para de algum jeito te falar qualquer coisa. Foi te querer no mesmo instante em
que um relance teu, apenas, me fez correr por ruas e mais ruas, a ir e voltar, temendo
te encontrar.
Mas foi-se a
noite e pensei ter despertado. Perplexo, de fato ainda acho que é dia, há muita luz, e já estou em outro lugar. Pois
agora somos quatro, desde quando o dia subitamente surgiu na janela: eu, tu,
nossas sombras. Ergueu-se o sol, tramando etapas, fulgurando teu rosto de
vidas. Não disse por que veio, nem onde iria te levar a luz dos seus rumos. Tua
sombra pairou com receio, mas tu seguiu confiante. Tua fronte ergueu-se ao sol,
dedicando-lhe os olhos. No trem que passava ao teu redor, lá fizeram-se a minha
sombra e mordaça. Pelas grades das janelas dos vagões, um intervalo de luz e
breu golpeava um enigma no teu peito. E teu rumo foi andar e andar. O sol
iluminou rastros e pedras, passagens e lembranças. Mas tu quedou-te na linha
negra de outra sombra, que não era tua. Naquela hora, não houve dor, não houve
medo. Mas a estrada tranquila guarda sempre um desfiladeiro. A paisagem do
mundo se desvanece aos meus olhos, quando do trem não cega-me o sol. Então
ainda éramos quatro, as sombras estavam ali. Porém, ao meio-dia, enquanto o sol
te flambava, já era um fantasma sem segredo o que te fizera cega e atônita: não
havia vagões no trem, não havia mais a tua própria sombra. Teu peito rompeu-se
e meus olhos se abriram em milhões de paisagens perdidas.
Eu sei que, a
bem da verdade, tudo aquilo foi e é uma véspera de poesia. E naquele sol, eu
aguardava ansioso o inverno. Muitos dias frios haviam passado pelo nosso verão,
ousado de chuvas e neblinas. Mas nunca aquela gravidade hibernal que nos
recolhe. Aquele peso sem pesar, medo sem temor, rotura sem fenda. Somente a
lembrança do inverno me bastaria para ruborizar as pontas dos dedos, ainda que
não envolvesse alguma xícara morna. Quantas voltas precisariam ser dadas pelos
ponteiros para que seu destino fosse morrer na geada? Passar de uma a outra
estação é tão somente esmorecer. A cerimônia da vida aguarda pelo inverno. Até
que possa cortejá-lo, quanto de tristeza e ócio. Saudade é o cheiro da lenha
queimada, o abraço espinicado da manta, a longa poesia da manhã. E então dou-me
conta dessa fatalidade: tu és exatamente este frio que não me chega. Enquanto
não vens, te amo perdidamente. Quando deixo de te sonhar, sou eu próprio que
desapareço. Esta é minha tragédia. Sonhar um amor, amar um sonho.
Mas nem sempre
foi assim. Houve um tempo em que amar parecia-me apenas um verbete de
dicionário. Talvez saber regê-lo e empregá-lo na mais limpa forma gramatical
fosse um grande prazer. Bons tempos em que o verbo amar disfarçava-se para mim com
aquelas máscaras de pessoas singulares e plurais, fazendo parecer que todos amavam.
Foi bom, era simples. Mas foi nascendo a
verdade, tirando as pessoas do amar, tirando os tempos do amar, tirando os
modos do amar. Quando dei por mim, estava diante da própria experiência de
amar. As pessoas - finalmente pude ver – podiam amar ou não amar. O imperativo
negativo nunca pareceu-me tão pavoroso. Os tempos do amar foram de algum modo engolidos
e digeridos em uma coisa só. Passei a
entender que não existe tempo para amar, tão pouco pode-se saber conjugar seu futuro.
O amar surgiu-me imprevisível e incalculável. Os tão estudados modos do amar caíram
como mentiras pueris, deixando espaço para inúmeras formas e funções de amar.
As formas de amar se apresentaram paternas, maternas, fraternas, platônicas,
grandiosas, incomuns, ilusórias - mas jamais falsas, pois aí tratava-se de
outra coisa. Naqueles tempos de tanta inocência, eu não sabia de fato o que era
amar e isso não me causava problema. Era um tempo em que eu não sabia que o
amor de fato pode atuar sobre as coisas: acaricia e mata, plenitude e perdição.
Era um tempo em que eu conhecia o amar no infinitivo, mas não sabia que o amar
era infinito.
E infinito
também é o sonho, é o tempo, é o amor, é a passagem do sol. São nossas sombras,
vagões e mais vagões. É não saber onde estão as palavras, é mudá-las no futuro,
é conjurar absurdos e dormir abraçado nos equívocos. Tudo atrela-se e conspira:
eis a poesia. Sempre mais aquecida no inverno, sempre tonta e obtusa. Seu
destino é jamais ser explicada, jamais ser percebida da mesma forma por tantos
olhos. É uma beleza de rima desafinada. É uma média de emoções. São toneladas
de mentiras. É o próprio destino da sucessão de momentos: o destino do tempo que
está selado, como nunca antes esteve nos vagões da história humana.
E o tempo? Seu
destino é consumir-se, tornar-se anacrônico de si mesmo. No ontem do porvir,
caminharemos por jardins da nossa infância ornados por algo de anárquico e
jubiloso. Mas ao despertar será hoje, e o hoje será a perfeita sinfonia da
consciência cristalina. Tudo parecerá perfeito como sempre quisemos que fosse.
Então, esmorecidos, do trono de carvalho da senectude vislumbraremos nossa
finitude. Mas o tempo que jamais descansara será interrompido - e como já
ocorre em processo lento, será absorvido. É porque a inquieta tendência dos
homens ao sofrimento já não faz sentido. Não há nada de tão compensatório pelo
que valha a pena sofrer - tal é nossa postura. Mesmo que haja, o recurso de
toda sorte de anestesias, da inconsciência, nos oferece o prazer insípido da via
rápida. Então, desfaz-se o tempo e o conteúdo da sabedoria humana precipita-se
num onde, vazio de quando. Há pressa em terminar com o tempo, pois o tempo nos
sufoca – queremos, enfim, a poesia! Sua fragmentação não basta - aliás,
angustia. Talvez haja pressa em a tudo trasformar, a todo instante. Mas quantos
instantes serão necessários para essa metamorfose de proporções inconcebíveis?
Assim nos atrelamos a um ciclo, até então falsamente eterno, de insatisfações.
A mudança verdadeira jamais ocorre em separado da permanência; são elementos
perenes que dão sentido às verdadeiras transformações. E a estas devemos alguma
paz, nosso sossego. Talvez o suficiente para que preservemos o tempo tal como
não nos seja nem hostil, nem breve, mas longo e vigilante. Fluido como uma
torrente.