sábado, 10 de maio de 2014



É mais uma noite de maio
a permutar-se com um dia de outono
Um vento ligeiro ou uma chuva
fugidios à cena de céu claro
É mais um prelúdio, é mais uma aurora
dessas coisas caladas e errantes

Outras estrelas, outros rompantes
de idéias, surpresas e atos
- é a difusão de mais fatos
e a confusão de mais sonhos
que deixam todos insones:
nossos doces monstros libertos

Querem contato ao dia que raia,
urge ouvir, falar, enxergar
a frenética troca por troca
e vai mais um fato nascendo de outro
- cair numa malha macia de silêncio
é um sonho que passa minuto a minuto

A quem ilumina este sol?
Quantas gotas te tocaram da chuva?
Vai-se passando este mito do dia
e seus astros, lendários heróis
lá fora de tua sina sombria
serão uma lenda na vida vazia

porque é maio, novamente maio
e restam centenas de dias
para que surja e então volte
este vento, o sol quase negro
os estertores do frio, o dia arisco
a languidez, somente agora, garbosa.

quarta-feira, 10 de abril de 2013



"Para fazer um verso, precisa-se ter visto muitas cidades, homens e coisas. Precisa-se ter experimentado os caminhos de países desconhecidos, despedidas longamente pressentidas, mistérios da infância não esclarecidos, mares e noites de viagens. Não basta mesmo ter recordações: precisa-se saber esquecê-las, precisa-se possuir a grande paciência de esperar até que elas voltem. Pois as próprias recordações não o são ainda. Antes, as recordações devem entrar em nosso sangue, nosso olhar, nosso gesto; quando, então, as recordações se tornam anônimas e não se distinguem do nosso próprio ser, então pode acontecer que, numa hora rara, nasça a primeira palavra dum verso."

 Rainer Maria Rilke, em "Os cadernos de Malte Laurids Brigge"

domingo, 7 de abril de 2013



Abril tem notas de ameixa
em sua notória aparição.
Molhado de febre, suntuoso
e ocre veludo de seus dias,
adornados caminhos de pérgulas.

Estamos subindo, alçando-nos
aos rumos de sonhos distantes.
De mármore fendido é a estrada
que me leva contigo pelas sombras
dos ramos das acácias imensas

Já são negras as fendas
rompendo luzeiros no céu
- são chuvas de águas tímidas,
o prelúdio medonho de maio,
a seiva de tudo que sou

Teus dias infinitos subjugam,
assentam-me moroso frente ao tempo.
E como de mãos dadas, caminhamos
por entre sombras, sob acácias
num chão de mármore insípido

Sirvo-te, abril, em tal condição,
porque espremes as horas do sol,
porque regas de orvalho as manhãs, 
porque buscas a métrica de maio: 
- eu anseio pelo silêncio do outono.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013



PRÓLOGO: Sonho de Uma Eterna Noite


Durante esses dias, por muitas noites sonhei com uma remota fascinação. Foram aspirações e devaneios, a nudez de uma sinceridade distante, a leveza impossível de um coração tão aberto e franco como era o próprio dia que o adornava. Eu caminhava vagarosamente ao teu lado, e minha sombra e a tua eram uma fruição calada. Teu sorriso espontâneo, fresco, brilhante, era um diálogo à parte de minhas conversas tão bobas, meus assuntos perdidos sem início nem fim, angustiado que no fundo estava para não te perder. Em cada segundo eu te precisava, e estavas ali. Era um vale, às vezes uma colina. Estávamos acima do tempo e do mundo, o céu nos convidava ao infinito, o sol permitia que sob algumas árvores pudéssemos parar por breves minutos. E aqueles eram minutos seculares, eram minhas mãos que tinham longamente tua pele por estrada. Eu tive o toque dos teus cabelos pela mais tíbia lembrança antes dos calafrios rajados em teu pescoço. Eu jamais soube explicar o que houve, como foi aquilo, quando. Foi algo que, a cada sonho, emanava de teus olhos, foi a moldura do teu rosto, o teu sorriso composto de pérolas. Foram teus ombros, teus braços, foram teu peito e tuas canelas. Foi tudo e talvez nada. Foi talvez tua voz contando sobre coisas tão singelas, foi tua vida pequena e frágil que num determinado instante esbarrou sobre a minha e lançou-me a um sonho de mil noites. Foi o desenho do teu nariz, foram tuas sombrancelhas, foi o momento em que teu queixo acidentou-se com meu rosto - mas isso jamais aconteceu, por mais que eu encenasse em devaneios febris. Foi teu pedido de ajuda, em algum lugar, em alguma hora. Nem sei se foi verdade, nem sei se foi outra história, dessas que invento para de algum jeito te falar qualquer coisa. Foi te querer no mesmo instante em que um relance teu, apenas, me fez correr por ruas e mais ruas, a ir e voltar, temendo te encontrar.

Mas foi-se a noite e pensei ter despertado. Perplexo, de fato ainda acho que é dia, há muita luz, e já estou em outro lugar. Pois agora somos quatro, desde quando o dia subitamente surgiu na janela: eu, tu, nossas sombras. Ergueu-se o sol, tramando etapas, fulgurando teu rosto de vidas. Não disse por que veio, nem onde iria te levar a luz dos seus rumos. Tua sombra pairou com receio, mas tu seguiu confiante. Tua fronte ergueu-se ao sol, dedicando-lhe os olhos. No trem que passava ao teu redor, lá fizeram-se a minha sombra e mordaça. Pelas grades das janelas dos vagões, um intervalo de luz e breu golpeava um enigma no teu peito. E teu rumo foi andar e andar. O sol iluminou rastros e pedras, passagens e lembranças. Mas tu quedou-te na linha negra de outra sombra, que não era tua. Naquela hora, não houve dor, não houve medo. Mas a estrada tranquila guarda sempre um desfiladeiro. A paisagem do mundo se desvanece aos meus olhos, quando do trem não cega-me o sol. Então ainda éramos quatro, as sombras estavam ali. Porém, ao meio-dia, enquanto o sol te flambava, já era um fantasma sem segredo o que te fizera cega e atônita: não havia vagões no trem, não havia mais a tua própria sombra. Teu peito rompeu-se e meus olhos se abriram em milhões de paisagens perdidas.

Eu sei que, a bem da verdade, tudo aquilo foi e é uma véspera de poesia. E naquele sol, eu aguardava ansioso o inverno. Muitos dias frios haviam passado pelo nosso verão, ousado de chuvas e neblinas. Mas nunca aquela gravidade hibernal que nos recolhe. Aquele peso sem pesar, medo sem temor, rotura sem fenda. Somente a lembrança do inverno me bastaria para ruborizar as pontas dos dedos, ainda que não envolvesse alguma xícara morna. Quantas voltas precisariam ser dadas pelos ponteiros para que seu destino fosse morrer na geada? Passar de uma a outra estação é tão somente esmorecer. A cerimônia da vida aguarda pelo inverno. Até que possa cortejá-lo, quanto de tristeza e ócio. Saudade é o cheiro da lenha queimada, o abraço espinicado da manta, a longa poesia da manhã. E então dou-me conta dessa fatalidade: tu és exatamente este frio que não me chega. Enquanto não vens, te amo perdidamente. Quando deixo de te sonhar, sou eu próprio que desapareço. Esta é minha tragédia. Sonhar um amor, amar um sonho.

Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que amar parecia-me apenas um verbete de dicionário. Talvez saber regê-lo e empregá-lo na mais limpa forma gramatical fosse um grande prazer. Bons tempos em que o verbo amar disfarçava-se para mim com aquelas máscaras de pessoas singulares e plurais, fazendo parecer que todos amavam. Foi bom, era simples. Mas foi  nascendo a verdade, tirando as pessoas do amar, tirando os tempos do amar, tirando os modos do amar. Quando dei por mim, estava diante da própria experiência de amar. As pessoas - finalmente pude ver – podiam amar ou não amar. O imperativo negativo nunca pareceu-me tão pavoroso. Os tempos do amar foram de algum modo engolidos e digeridos em uma coisa só.  Passei a entender que não existe tempo para amar, tão pouco pode-se saber conjugar seu futuro. O amar surgiu-me imprevisível e incalculável. Os tão estudados modos do amar caíram como mentiras pueris, deixando espaço para inúmeras formas e funções de amar. As formas de amar se apresentaram paternas, maternas, fraternas, platônicas, grandiosas, incomuns, ilusórias - mas jamais falsas, pois aí tratava-se de outra coisa. Naqueles tempos de tanta inocência, eu não sabia de fato o que era amar e isso não me causava problema. Era um tempo em que eu não sabia que o amor de fato pode atuar sobre as coisas: acaricia e mata, plenitude e perdição. Era um tempo em que eu conhecia o amar no infinitivo, mas não sabia que o amar era infinito.

E infinito também é o sonho, é o tempo, é o amor, é a passagem do sol. São nossas sombras, vagões e mais vagões. É não saber onde estão as palavras, é mudá-las no futuro, é conjurar absurdos e dormir abraçado nos equívocos. Tudo atrela-se e conspira: eis a poesia. Sempre mais aquecida no inverno, sempre tonta e obtusa. Seu destino é jamais ser explicada, jamais ser percebida da mesma forma por tantos olhos. É uma beleza de rima desafinada. É uma média de emoções. São toneladas de mentiras. É o próprio destino da sucessão de momentos: o destino do tempo que está selado, como nunca antes esteve nos vagões da história humana.

E o tempo? Seu destino é consumir-se, tornar-se anacrônico de si mesmo. No ontem do porvir, caminharemos por jardins da nossa infância ornados por algo de anárquico e jubiloso. Mas ao despertar será hoje, e o hoje será a perfeita sinfonia da consciência cristalina. Tudo parecerá perfeito como sempre quisemos que fosse. Então, esmorecidos, do trono de carvalho da senectude vislumbraremos nossa finitude. Mas o tempo que jamais descansara será interrompido - e como já ocorre em processo lento, será absorvido. É porque a inquieta tendência dos homens ao sofrimento já não faz sentido. Não há nada de tão compensatório pelo que valha a pena sofrer - tal é nossa postura. Mesmo que haja, o recurso de toda sorte de anestesias, da inconsciência, nos oferece o prazer insípido da via rápida. Então, desfaz-se o tempo e o conteúdo da sabedoria humana precipita-se num onde, vazio de quando. Há pressa em terminar com o tempo, pois o tempo nos sufoca – queremos, enfim, a poesia! Sua fragmentação não basta - aliás, angustia. Talvez haja pressa em a tudo trasformar, a todo instante. Mas quantos instantes serão necessários para essa metamorfose de proporções inconcebíveis? Assim nos atrelamos a um ciclo, até então falsamente eterno, de insatisfações. A mudança verdadeira jamais ocorre em separado da permanência; são elementos perenes que dão sentido às verdadeiras transformações. E a estas devemos alguma paz, nosso sossego. Talvez o suficiente para que preservemos o tempo tal como não nos seja nem hostil, nem breve, mas longo e vigilante. Fluido como uma torrente.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012


Acordei assim, repleto de rochedos.
Circundando um vale úmido, era largo
e largos eram meus braços de pedra

Todos cascalhos de minha grandeza
deslizavam de minha fronte heróica
para tão logo tocar o chão

Nenhum cascalho rolou sem partir-se
e uma garoa de terra salpicou todo vale
como efeito destas largas dimensões.

Alguns taparam-se de meus minérios
outros protegeram as pedras brutas...
Poucos, de fato, entenderam o rochedo.

Pedras que eu amava, se foram pelo vale.
Algumas, sei, seriam rubis portentosos
não fosse a corredeira os levar

O rio que sempre espreitou-me,
que levava minha alma decantada,
depurou sem licença parte de mim.

Por vezes, vem a neve e me congela
- já não tenho pedras nem lava
sobre meu cume abatido.

E então queda-me a erosão pelos flancos
como abutre ensandecido, mortificando-me.
E lá me vou pelo tempo, aos farelos

reduzido a recortes, sucedidos
pedras que rolaram, águas que passaram
Dormirei árido, elevado, antigo.

terça-feira, 17 de julho de 2012




Sobre ti nada tenho a dizer
apenas há esta noite, seca
sem nuvens, nenhuma borrasca
apenas calor da terra e movimento
- um sopro estridulante e perene

todas as folhas de todos os caules
sobrenadantes à minha vista opaca
pairando convulsas onde o hábito
ou de certo, malgrado estas linhas,
a inércia insulou-me

estou cingido de castanhas e trigo
em minha mesa há indícios de cera
não há nada que devas saber
porquanto não és objeto em assunto
e de ti nada mais saberei

parto o grafite novamente
rasuro frases perfeitas e temerosas
- é tudo verdade, é tudo verdade!
da campânula uma língua de fogo
gargalha e me conduz

há uma maldição no ventre do tempo
são as horas, são os anseios
são gloriosas palavras nefastas
ninguém as quer para si
mas são minhas, são suas

são as filhas de nosso tempo
as folhas que estão a pairar
- mas nada vejo lá fora
é tudo fosco nesta dança do enfado
não há chuva para benzer a verdade

então retorno os olhos do vento
e despenco nesta folha abissal
passo dias sem erguer-me dos versos;
a verdade escondeu-se de mim,
e dela não tenho nada a dizer.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Roberta Sá e Yamandú Costa - Modinha (Tom Jobim)


Não, não pode mais meu coração
Viver assim dilacerado
Escravizado a uma ilusão
Que é só desilusão
Não, não seja a vida sempre assim
Como um luar desesperado
A derramar melancolia em mim
Poesia em mim
Vai, triste canção, sai do meu peito
E semeia emoção
Que chora dentro do meu coração

quarta-feira, 4 de abril de 2012



Nos escuros pinheiros se desenlaça o vento.
Fosforece a lua sobre as águas errantes.
Andam dias iguais a perseguir-se.

Descinge-se a névoa em dançantes figuras. 
Uma gaivota de prata se desprende do ocaso.
As vezes uma vela. Altas, altas, estrelas.

Ou a cruz negra de um barco.
Só.
As vezes amanheço, e minha alma está úmida.
Soa, ressoa o mar distante.
Isto é um porto.
Aqui eu te amo.

Aqui eu te amo e em vão te oculta o horizonte.
Estou a amar-te ainda entre estas frias coisas.
As vezes vão meus beijos nesses barcos solenes,
que correm pelo mar rumo a onde não chegam.

Já me creio esquecido como estas velhas âncoras.
São mais tristes os portos ao atracar da tarde.
Cansa-se minha vida inutilmente faminta..
Eu amo o que não tenho. E tu estás tão distante.

Meu tédio mede forças com os lentos crepúsculos.
Mas a noite enche e começa a cantar-me.
A lua faz girar sua arruela de sonho.

Olham-me com teus olhos as estrelas maiores.
E como eu te amo, os pinheiros no vento, 
querem cantar o teu nome, com suas folhas de cobre.

- Pablo Neruda

segunda-feira, 26 de março de 2012

Na tarde em que aterrissei meus olhos 
por teus horizontes, em minhas plagas
estavam aquelas águas, densas e mansas
te guardando ao sol de raios fulvos

Havia alguma coisa dispersa
que pelas cercanias me imanava
mas quando perto, eu te queria inversa,
cúmplice de minha visão atordoada

Teus olhares rasteiros em um bonde...
teus pés nas pedras das calçadas
reviviam quantas lágrimas passadas
em nossos cantos, nem sei mais onde

De uma paixão quase frugal
nasceu uma saudade tempestuosa
que quando te vê, toda garbosa
ilícita em tuas noites soturnas

não te quer deixar um só instante
do adeus que treme à despedida
São tuas esquinas minha acolhida
onde repouso, cansado, reminiscências

Caminho por indescências, enxaguado
e em cantigas velhas que te inflamam
encontro pretéritos nobres e amados
disseminando almas que te reclamam

Se te encontro, é um feitiço ardiloso,
um encanto, uma saraivada de notas,
são cores, é como certos sabores,
liberto de tantas e tantas dores

São os plátanos de folhas secas
de tuas vielas cortantes
que choram profundo a alma do outono.
E de cobrir lástimas errantes

é que entregam à eternidade
esses respingos de saudade
que nos braseiam, em quantidade
a dádiva efêmera do teu sangue.

quarta-feira, 21 de março de 2012



Nesta sombra em que vivo,
sofro por seres assim irreal, 
assim tão além do que se pode pensar...
Sofro porque nem sei
quando haverá, nos meus olhos,
luz com que te veja
e com que te adore...
Nesta sombra em que vivo,
Por que me não  apareces,
Numa hora extática,
se sabes que te ando a esperar, 
Noite por noite!...


(Cecília Meireles - Poema da Dúvida)

segunda-feira, 19 de março de 2012



Folhas de plátano mergulham tímidas
sobre teu ventre no findar da noite
repousam ao teu lado, num vinco de cedro
que à tua cama da janela planam

Meio sem jeito, vão tecendo veste
na tua cintura de trigueiros rastos
uns sobre os outros, delicadamente
mas tristemente te mantêm calada

É tão triste quando te calas,
já disse outrora quem passou daqui
para outros tempos, sem mais amores
deixou as dores por legado vil

E é vento meu suspiro, soprando fraco
é um frêmito em teu peito que se encerra
e a noite toda chove muda sobre as folhas
e te cobre morna de afagos tão secretos

Não querem que te acorde, te querem
nesse ressonar perpétuo e frugal
percorrendo a sombra da cortina
toda a silhueta de plátanos e lua

Não podem, à volta tua, desperta
dessa infinitude que se termina
pousar no dorso, escorrer pelos braços
dançar em rodeios sem que te espantes

Desse modo te permeiam quietas
essas agruras que nem sabes, nem vês
pois quando despertas, em folhas,
não há rispidez, nem horas certas

para que colhas, pela manhã
vestígios meus 
do plantar da noite.

segunda-feira, 5 de março de 2012



É a terra vencida que nos dá as estrelas.
                              Boécio



Porque te ausentas, meu sangue arde.
Porque te calas, também me calo
- sou coerente com cada silêncio
e irresponsável até o limite da dor

Isso me torna fraco, mas ainda assim
tua sina nesse momento impiedoso,
teu fado numa noite seca de março,
teu outono vindouro, tua manta

Enquanto te buscas num sono ébrio,
desenho num sonho nossas nuvens
condensando desejos tontos e nus
em um rascunho de vida jamais visto

São teus cabelos uma cascata de veludo
teus olhos duas jóias brilhantes
teu rosto inteiro uma esperança
que me chega antes de teu sorriso

Ah, guarda-me teu sorriso!
porque sem ele eu seria triste
teu longo sorriso invasor
que envolveu tudo que me resta

Teus olhos e teu sorriso, tuas mãos
- por onde conter esses impulsos
que se somam a dores, que perdem-se
que dominam minhas profundas angústias?

Fala qualquer coisa, olha, pensa...
adorna minha vida com teus lábios,
abraça-me mesmo da saudade que tens
porque te evoco, longe, em qualquer condição.

domingo, 4 de março de 2012



A um olmo seco


No velho olmo, fendido pelo raio
e já metade apodrecido,
com as chuvas de abril e o sol de maio
algumas folhas verdes lhe hão saído.

Oh olmo centenário na colina
que lambe o Duero! Um musgo amarelento
mancha-lhe a casca esbranquiçada
no tronco carcomido e poeirento.

Não será, qual os cantantes álamos
que guardam o caminho e a ribeira,
habitado por rouxinóis pardos.

Exército de formigas em fileiras
vai nela trepando, e nas suas entranhas
urdem as cinzas teias as aranhas.

Antes que te derrube, olmo de Duero
com o machado o lenhador, e o carpinteiro
te converta em badalo de campainha,
arreio de carroça ou jugo de carreta:
antes que rubro na lareira, à manhãzinha,
ardas em alguma palhota
no meio do caminho;
antes que te espedace um torvelinho
e trinque o bafo das serras brancas:
antes que o rio até o mar te empurre
por vales e barrancas
olmo, quero anotar na caderneta
a graça de tua rama enverdecida.
Meu coração espera
também, elevando-se à luz e à vida,
outro milagre da primavera.


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012



FLAUTIM

Guardaremos juntos
os acertos, breves,
os enganos, fundos,

e aquele remoto
amparar de parcos,
altivos escolhos.

Cairão o signo
e a secreta cinza
desse ardente enigma.

Não lamentaremos
mais que o desencontro
dos humanos termos,

a rápida marca
que o passado imprime
na face, na máscara,

e os puros despojos
que às vezes são versos
e sempre são ossos.

Não diremos nada
dos velhos desejos
que a memória abraça,

sem qualquer palavra
não recordaremos
o que nos pesava,

mas apenas isso
que nos pese ainda:
ter vindo, ter sido.




Bruno Tolentino

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012



Fadado que estava da eternidade,
que a sucessão de momentos e o movimento
impróprio em que adentrava à recusa,
fizeram estar e ser e não parar,
ribombando o todo, por todos os lados
o homem, que se via assombrado
agora perpetuava-se cismado

E ao caminhar anestesiado, somente
fazia viver os olhos túrgidos
os ouvidos moucos, a voz sinistra
que o fizera perceber o fim do instante,
e projetado para o nunca, reviver
a cada dor, a cada rompante
as novas brisas que o passado deixara

Com o sonho, escondeu-se na tapera
e pelas frestas de cada pedra
a noite ainda o alcançava
- desenhava máculas estrelares,
contornava as crateras lunares
enquanto escondia esse sonho,
desafeto imediato de possibilidades

Então sentou-se, o homem rude,
perdido em sua virtude imensa
enquanto lutava com seu instante
pela obnubilada existência
E viu estrelas, e viu chuva
viu as coisas de cada dia inundadas
na noite vasta de muitas brumas.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012




"Amor é quando é concedido participar um pouco mais. Poucos querem o amor, porque o amor é a grande desilusão de tudo o mais. E poucos suportam perder todas as outras ilusões. Há os que voluntariam para o amor, pensando que o amor enriquecerá a vida pessoal. É o contrário: amor é finalmente a pobreza. Amor é não ter. Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor. E não é prêmio, por isso não envaidece, amor não é prêmio, é uma condição concedida exclusivamente para aqueles que, sem ele, corromperiam o ovo com a dor pessoal. Isso não faz do amor uma exceção honrosa; ele é exatamente concedido aos maus agentes, àqueles que atrapalhariam tudo se não lhes fosse permitido adivinhar vagamente." (...)

Clarice Lispector. "O Ovo e a Galinha".

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012



Canto Súbito de Hermes


Somos quatro desde quando o dia subitamente surgiu na janela. Ergueu-se o sol, tramando etapas, fulgurando teu rosto de vidas. Não disse por que veio, nem onde iria te levar a luz dos seus rumos. Tua sombra pairou com receio, mas tu seguiu confiante. Tua fronte ergueu-se ao sol, dedicando-lhe os olhos. No trem que passava ao teu redor, lá fizeram-se a minha sombra e mordaça. Pelas grades das janelas dos vagões, um intervalo de luz e breu golpeava um enigma no teu peito. E teu rumo foi andar e andar. O sol iluminou rastros e pedras, passagens e lembranças. Mas tu quedou-te na linha negra de outra sombra, que não era tua. Naquela hora, não houve dor, não houve medo. Mas a estrada tranquila guarda sempre um desfiladeiro. A paisagem do mundo se desvanece aos meus olhos, quando do trem não cega-me o sol, pensei. Então ainda éramos quatro, as sombras estavam ali. Porém, ao meio-dia, enquanto o sol te flambava, já era um fantasma sem segredo o que te fizera cega e atônita: não havia vagões no trem, não havia mais a tua própria sombra. Teu peito rompeu-se e meus olhos se abriram em milhões de paisagens perdidas.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012



Aquí estoy con mi pobre cuerpo frente al
crepúsculo
que entinta de oros rojos el cielo de la tarde;
mientras entre la niebla los árboles oscuros
se libertan y salen a danzar por las calles.

Yo no sé por qué estoy aquí, ni cuándo vine
ni por qué la luz roja del Sol lo llena todo;
me basta con sentir frente a mi cuerpo triste
la inmensidad de un cielo de luz teñido de oro,

la inmensa rojedad de un sol que ya no existe,
el inmenso cadáver de una tierra ya muerta,
y frente a las astrales luminarias que tiñen el
 cielo,
la inmensidad de mi alma bajo la tarde inmensa.




[Pablo Neruda, Crepusculario.]

domingo, 22 de janeiro de 2012


O Duo Doloroso
V
(As Horas de Katharina)

Difícil o vazio. Mais difícil
entre as quatro paredes do intelecto.
Ali, entre os sentidos, sob o teto
e o solo onde começa o precipício,

o vôo, impertinente, tinha início
a todo instante e nunca era direto,
era oblíquo: ora o gozo era suplício,
ora o suplício mesmo era dileto...

O abismo era metódico, seu método
audaz, mas um se foi e outro esvaiu-se
como mais um suspiro sem remédio.

Já o vazio, o mais límpido exercício,
era um puro palácio aritmético...
Mas e a vida? Ah, a vida era esse vício!


Bruno Tolentino

terça-feira, 17 de janeiro de 2012


Johannes Brahms
Concerto nº2 para piano e orquestra
3º movimento - Andante

Baremboim com a Filarmônica de Munique

Bravo!


Eu te diria coisas amenas esta noite
como o pousar de borboletas no teu ombro
Eu te diria coisas nostálgicas, antigas
como a lava que de mim transborda
Eu te diria coisas longas e sem rumo
como o contorno dos teus cabelos
Eu te diria versos afiados e crus
como as linhas do teu pescoço

Eu te perturbaria sutilmente
mas logo te deixaria quieta,
e essa quietude é tão singela
que seriam meus olhos e meu peito
deixados inertes e mudos,
eventualmente estarrecidos
gravemente encantados
- como o fazem as orquídeas

Eu faria de ti um sonho longínquo,
uma brasa pequena que se acalma
na lareira morna de uma triste manhã
Eu faria de ti, assim, impossível
e inalcansável criatura fugidia
que vive teimosa, guardada na saudade

Eu faria de ti uma nuvem rasa
que me desse uma sombra fresca
e pela tarde um cheiro de chuva
E meus braços seriam crianças
que ao recolher-te em abraços
sorririam molhadas de teus gotejos

Eu te diria coisas doces e macias,
suaves como uma nau que te busca
nas recônditas águas de minhas idéias
Eu te diria pequenas coisas transparentes
como o vidro frágil de teus olhos
e tombaria feliz pelas tuas maçãs
com minhas mãos de infinitos dedos

e pousaria sem vida
em teus lábios escarlates.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012



A lira de raios do sol
desprende de ti uma chance:
em um momento poderei te ver.
De outra sorte, temerária,
ficarás à sombra cândida
dos segredos em que te banhas,
entronizada, distante
enquanto recolho tuas gotas.

Porque tens borbulhas
marejando a fronte alva,
surgem temas de prata e anis
circundando qual fitas reluzentes
- e são tão lentas e mornas
a formar esse anteparo,
hoje um riacho alhures,
refletindo a lua de teus olhos.

É o fastio de banhar os pés,
de sentir o aroma da brisa,
ferver meu sangue nessas águas
opulentas, abissais e medonhas,
enquanto à margem do tempo
brilha o desvario do sol:
de raios lançados, devoto,
palheta de luzes sobre ti.

Com teu manso destino moroso
e já túrgida de tantas manhãs,
que mais ousarei te dar,
acólito ordinário de tuas águas?
Vai uma sombra minha hesitante,
uma espera infinita a remar,
ao sono de uma lenta cascata 
que enovela-nos à infinitude.